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30/11/2012

Π2 - (PI ao Quadrado - Politicamente Incorreto ao Quadrado)

Π2 - (PI ao Quadrado - Politicamente Incorreto ao Quadrado)

Estou lançando um novo projeto digital: uma revista em PDF, com o objetivo de publicar cronicas, contos, poemas e imagens relacionados ao contexto do POLITICAMENTE INCORRETO, que é de fato um movimento de resistência à ditadura fascista e hipócrita do Politicamente Correto reinante nessa nossa sociedade que caminha para a esterilização. Convido aos amigos que queiram colaborar com suas artes que as envie para meu e-mail: barata.cichetto@gmail.com, juntamente com uma pequena biografia. Ah, e mandem logo, pois o lançamento é no dia do FIM DO MUNDO. O nome da revista é Π2 - (PI ao Quadrado - Politicamente Incorreto ao Quadrado). Aguardo suas colaborações.

Serviço:
Π2 - (PI ao Quadrado - Politicamente Incorreto ao Quadrado)
Revista Virtual
88 Páginas
Formato: PDF
Lançamento: 21/12/2012

Rock da Mortalha


Rock da Mortalha
Raymundo Raine

Última formação da banda em 1979: Orlando Lui (Baixo e Vocal), Marcos Baccas (Guitarra e Vocal), Marco Carvalhanas (Bateria), Participação Especial de Lola (Dançarino).

O embrião desse “power trio”  maldito nasceu em 1968 à margem do bairro histórico do Ipiranga, São Paulo, através da dupla Orlando Lui (Baixo e Vocal) e Marcos Baccas (Guitarra e Vocal) e chamavam-se “Os Bizimbetas”. Nesta ocasião fabricaram suas guitarras e começaram a trilhar a cena bailesca. Em 1969, mudaram o nome para “Missa Negra” e em paralelo o duo foi convidado a em um outro grupo de baile “Os Jades”. Em 1970 tocaram com o “Apollo 5” e com “Os Beatmans”. No limiar dos anos 70 (1971) tocaram com os “Slaves Of Drug” e com “Os Belsons”.

Em 1972, num aprendizado voraz, o duo ainda tocou com “Os Flippers” e, finalmente, com “Os Sifu’s”, último conjunto de baile. Em Setembro desse ano, Orlando (Landinho) contraiu hepatite e ficou recluso por três meses. Fora visitado diariamente por Marcos e ambos começaram a compor repertório próprio, marcado pelo “Hard Rock” e cantado em português.

Verão de 1973, Orlando, místico e inspirado em gibis de terror, grita o nome da lenda “Rock da Mortalha”. Surge a trindade pesada tupiniquim com a adesão do baterista Julinho. Passa a usar vestes negras, portando capas de morcego, tarjas e botas de soldado. Envolvem-se com magia e drogas. No repertório, cantam a luta permanente entre o “Bem” e o “Mal”, falam de reencarnação, buscam o transcendental.

Em Janeiro de 1974 participam do I Festival de Águas Claras em Iacanga (Bauru, SP), encerrando a noite com uma performance que eletrizou seu primeiro grande público. Nessa ocasião havia uma galera argentina que registrou-os em fita cassete. Foram vistos como o “Black Sabbath Tupiniquim”. Um ledo engano e confortante exagero, pois buscavam sua identidade e eram “Sui Generis” comparados às outras bandas de Sampa. 

A partir de então, seu nome começa a ecoar pelos quatro cantos o país. Onde tocaram fizeram estremecer o “Underground”, abalando os pilares sombrios da Ditadura. Numa época em que não se cogitava o Black Metal. Na abertura do show, Orlando escondia a face sob a luz negra, portando um crânio humano ao braço, dando início a um ritual macabro. Monologava sobre nosso cotidiano infernal enquanto um som tétrico envolvia Lola, um bailarino dantesco arrastando-se no palco movediço de gelo seco. Em seguida, Marcos arrancava “riffs” poderosos da partitura da Morte e o público era abençoado pelo anjo do Rock and Roll.

No ano de 1977, chegaram a gravar em 4 canais no Estúdio da Pirata, cujo dono Aurino, é irmão de Eduardo Araújo. Receberam convites sinistros de empresários e seitas satânicas. Nessa época foram rotulados de fazer um “Rock Putrefato Pesadíssimo”. Houve fãs seguidores: um deles vestido á caráter, levou um caixão a um concerto. Participaram de programas de TV, vários festivais, tocaram e inúmeros teatros e bocadas. No ano seguinte, 1978, a banda chega ao auge, troca músicos, muda de visual e termina em 16 de Abril de 1976, quando muda de nome para “Xock”.

Ao começar a década de 80, mudam de nome para “Crisálida” mas ai começa outra longa história... Infelizmente, Marcos e Orlando faleceram há pouco tempo. Seu primeiro baterista pirou e perambula por ai como um fantasma bêbado, atormentado pela própria lenda.

(Texto escrito em memória de Orlando Lui (Landinho), falecido em 23 de Dezembro de 2003.)

Raito Raine
captainray@bol.com.br

29/11/2012

Sobre Amigos e Calcinhas

Sobre Amigos e Calcinhas
Luiz Carlos Barata Cichetto

Texto escrito como trabalho prático na Oficina de Literatura: Vida e Ficção, Coordenação: Deborah Goldemberg, Oficina da Palavra Casa Mário de Andrade, 22 a 30/11/2012. O texto abaixo é o apresentado na Oficina e na sequencia as alterações propostas.


(Mulher Sentada com a Perna Esquerda Dobrada - (Edith Schiele), 1917 - Praga, Národní Galerie)
Meu Amigo Andrade

Andrade é meu amigo há uns 30 anos e um profundo conhecedor de literatura. Mas não como acadêmico e sim como voraz leitor, desde menino, de qualquer coisa que se aproxime de suas mãos e olhos. Na adolescência, quando o conheci, era daqueles que passavam noites e noites em claro lendo sobre os mais diversos assuntos. Da poesia clássica à medicina nuclear, qualquer coisa interessava ao Andrade. E embora sua aparência física ou sua forma de se vestir e portar não fossem fora do convencional, era tido como “o cara estranho” da turma, sempre com livros debaixo do braço e a conversa girando em torno de grandes autores da literatura. Enfim, meu amigo Andrade era um sujeito muito esquisito, isso era mesmo.

No último sábado, um calor desgraçado desde o amanhecer, e eu ainda de cuecas tomava meu café, quando o telefone tocou. Era o Andrade, convidando para uma "conversa molhada", como sempre se referia às nossas conversas regadas a cerveja num "pé-sujo" do bairro.  Em menos de duas horas estávamos sentados em uma das mesas do boteco que há muitos anos era nosso ponto de encontro predileto, tomando nossas cervejas em "copos de botequeiro" como chamamos aqueles tradicionais copos conhecidos como "americano" e que nos bares servem tanto a cerveja da noite, quanto ao pingado da manhã. 

Andrade bebericava sua cerveja sem gelo e folheava displicentemente um livro, quando cheguei, também com um livro debaixo do braço. Era uma espécie de código secreto, de senha, entre nós, desde quando nos conhecemos, essa coisa de aparecermos em nossos encontros sempre com livros, que no fim eram trocados e nunca mais destrocados. A minha senha daquele dia era: "Olga", de Fernando Morais, a do Andrade "Eu e Outros Poemas", de Augusto dos Anjos, que, aliás, tinha sido minha senha há uns dez anos atrás. Mais que esquisito esse meu amigo Andrade...

Nossas conversas sempre se iniciavam sobre os livros que usávamos como "senha" no encontro, mas naquele dia foi um pouco diferente, pois Andrade conhecia bastante a vida de Olga Benario, esposa de Luiz Carlos Prestes e que fora morta num campo de concentração durante a segunda guerra mundial, e eu sabia quase que de cor todos os poemas do único livro editado pelo poeta paraibano. Portanto, o prólogo daquele nosso encontro foi um tanto mais curto. E assim passamos muito mais rapidamente da literatura à vida real, segunda parte dos nossos encontros, quando falamos sobre família, mulheres, filhos, essas coisas corriqueiras, mas essenciais. Afinal, como dizia sempre o Andrade parafraseando Oscar Wilde: "A literatura antecipa sempre a vida. Não a copia, amolda-a aos seus desígnios." 

“Ô, cidadão”, gesticulou Andrade ao dono do bar “manda outras duas, a minha sem gelo!”. Mas enquanto o homem abria as cervejas, algo mudaria o roteiro de nosso encontro. Uma mulher belíssima, usando uma saia minúscula e possuidora de um belo e longo par de pernas adentrou ao bar e sentou-se na mesa em frente à nossa. Andrade deixou cair os óculos sobre “Olga”, o homem do bar a cerveja sobre a mesa e eu, bem, eu deixei cair o queixo sobre Augusto dos Anjos. Ela, é claro, percebeu, mas disfarçou pedindo “uma água com gás, por favor!” Amaldiçoei minha cerveja e desejei que Andrade saísse dali correndo, levando a história da revolucionária judia para longe dali. Muito esquisito, eu.

Mas Andrade não saiu. E em sua esquisitice, naquele momento travestida de pura sacanagem, começou a falar alto sobre as aventuras e sofrimentos da revolucionária alemã, grifando verbalmente a palavra “mulher” constantemente. O sacana do Andrade queria mostrar o quanto ele tinha apreço e respeito por mulheres fortes e corajosas. Queria impressionar a dama sentada a nossa frente. “Entenda, meu amigo, que essa MULHER era de uma fortaleza incrível. Desde menina já se engajou nas fileiras anarquistas e comunistas na Alemanha. MULHER de fibra!”. Entretanto, a tática do Andrade parecia não surtir nenhum efeito, pois ela não tirava os olhos do celular, digitando uma mensagem, bebericando sua água com gás e cruzando e descruzando aquelas pernas de um lado para o outro, num balé digno das mais dedicadas dançarinas do Moulin Rouge. 

“Ela foi uma das mulheres mais fortes da história da humanidade”, quase berrava Andrade “Uma vadia!”, sussurrei. “A Olga era uma vadia? Tá louco?”. “Estou falando da dona aí em frente, seu babaca!”. “Ah, sim... Mas então... O desgraçado do Getulio mandou-a para as mãos dos nazistas, grávida..”. Hã, hã... É verde claro!”, disse eu. “O quê, cacete, o que é verde claro?”. “A calcinha dela. A calcinha dela é verde claro!”. “Da Olga?”. “Claro que não, estou falando da dona ai em frente... Ah, deixa de ser chato, Andrade!”. (Silêncio) “Não, não é! É azul!”. “Hein? O que é azul?”.“A calcinha, a calcinha é azul...” Andrade deu uma gargalhada escandalosa que fez com que todos dentro do bar se virassem em nossa direção. Ou melhor, quase todos, pois a mulher, alvo da nossa atenção, continuava impassível, digitando no celular e cruzando e descruzando as longas pernas numa rapidez impressionante.

Quase saímos na porrada para definir a cor da calcinha da moça. E concluímos que era um tom entre o azul e o verde. “Azul esverdeado”, como achei de definir, ou “verde azulado”, como Andrade ainda queria. E quando tínhamos chegado a um consenso sobre a cor da calcinha, o balé de pernas simplesmente cessou. A “bailarina” juntando os joelhos fechou o celular, pediu a conta e saiu pela porta, atravessando a rua a passos rápidos e entrando num carro estacionado, que rapidamente desapareceu na primeira esquina, enquanto eu e Andrade ficamos totalmente em silêncio, como que nos culpando mutuamente.

Olhamos cada um aos nossos livros e em silêncio destrocamos os títulos, como nunca tínhamos feito antes. E nos despedimos sem uma palavra sequer, indo cada um para um lado da rua, com seu livro debaixo do braço. A vida, parece, tinha entrado em um carro e desaparecido minutos antes. Mas ainda tínhamos aos nossos livros e possivelmente em algum outro sábado de sol estaríamos de volta ali, naquele boteco sujo, onde a vida parecia existir. Esquisitos nós, eu e o Andrade!

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Após a apresentação e leitura na Oficina e baseado em comentários, tanto dos participantes, quando da Coordenadora, onde a critica maior foi sobre o fato de o texto não ter um gênero definido, oscilando entre crônica e conto, foi solicitado algumas mudanças. O texto ficou assim, sendo que inclusive mudei o titulo.

Sobre Amigos e Calcinhas

No último sábado, um calor desgraçado desde o amanhecer, e eu ainda de cuecas tomava meu café, quando o telefone tocou. Era o Andrade, meu melhor amigo há quase 30 anos, convidando para uma "conversa molhada", como sempre se referia aos nossos papos regados a cerveja num "pé-sujo" do bairro. Andrade bebericava sua cerveja sem gelo e folheava displicentemente um livro quando cheguei, também com um livro debaixo do braço. Era uma espécie de código secreto, de senha, entre nós, desde quando nos conhecemos, essa coisa de aparecermos em nossos encontros sempre com livros, que no fim eram trocados e nunca mais destrocados. A minha senha daquele dia era: "Olga", de Fernando Morais, a do Andrade "Eu e Outros Poemas", de Augusto dos Anjos, que, por esquecimento e desleixo dele, já tinha sido minha senha há uns três anos atrás.

Nossas conversas sempre se iniciavam sobre os livros que usávamos como senha do encontro, mas naquele dia foi um pouco diferente, pois Andrade conhecia bastante a vida de Olga Benario, esposa de Luiz Carlos Prestes, morta num campo de concentração durante a segunda guerra mundial, e eu sabia quase que de cor todos os poemas do único livro editado pelo poeta paraibano. Portanto, o prólogo daquele nosso encontro foi um tanto mais curto. E assim passamos muito mais rapidamente da literatura à vida real, segunda parte da nossa conversa, quando sempre falávamos sobre família, mulheres, filhos, essas coisas corriqueiras, mas essenciais. Afinal, como dizia sempre o Andrade parafraseando Oscar Wilde: "A literatura antecipa sempre a vida. Não a copia, amolda-a aos seus desígnios." 

“Ô, cidadão”, gesticulou Andrade ao dono do bar “manda outras duas, a minha sem gelo!”. Mas enquanto o homem abria as cervejas, algo mudaria o roteiro de nosso encontro. Uma mulher belíssima, usando uma saia minúscula e possuidora de um belo e longo par de pernas adentrou ao bar e sentou-se na mesa em frente à nossa. Andrade deixou cair os óculos sobre “Olga”, o homem do bar a cerveja sobre a mesa e eu, bem, eu deixei cair o queixo sobre Augusto dos Anjos. Ela, é claro, percebeu, mas disfarçou pedindo “uma água com gás, por favor!” Amaldiçoei minha cerveja e desejei que Andrade saísse dali correndo, levando a história da revolucionária judia para longe do bar. 

Mas Andrade não saiu. E começou a falar alto sobre as aventuras e sofrimentos da revolucionária alemã, grifando verbalmente a palavra “mulher” constantemente. O sacana do Andrade queria mostrar o quanto ele tinha apreço e respeito por mulheres fortes e corajosas. Queria impressionar a dama sentada a nossa frente. “Entenda, meu amigo, que essa MULHER era de uma fortaleza incrível. Desde menina já se engajou nas fileiras anarquistas e comunistas na Alemanha. MULHER de fibra!”. Entretanto, a tática do Andrade parecia não surtir nenhum efeito, pois ela não tirava os olhos do celular, digitando uma mensagem, bebericando sua água com gás e cruzando e descruzando as pernas de um lado para o outro, num balé digno das mais dedicadas dançarinas do Moulin Rouge. 

“Ela foi uma das mulheres mais fortes da história da humanidade”, quase berrava Andrade “Uma vadia!”, sussurrei. “A Olga era uma vadia? Tá louco?”. “Estou falando da dona aí em frente, seu babaca!”. “Ah, sim... Mas então... O desgraçado do Getulio mandou-a para as mãos dos nazistas, grávida..”. Hã, hã... É verde claro!”, disse eu. “O quê, cacete, o que é verde claro?”. “A calcinha dela. A calcinha dela é verde claro!”. “Da Olga?”. “Claro que não, estou falando da dona ai em frente... Ah, deixa de ser chato, Andrade!”. “Não, não é! É azul!”. “Hein? O que é azul?”.“A calcinha, a calcinha é azul...” Andrade deu uma gargalhada escandalosa que fez com que todos dentro do bar se virassem em nossa direção. Ou melhor, quase todos, pois a mulher, alvo da nossa atenção, continuava impassível, digitando no celular e cruzando e descruzando as longas pernas numa rapidez impressionante.

Quase saímos na porrada para definir a cor da calcinha da moça. E concluímos que era um tom entre o azul e o verde. “Azul esverdeado”, como achei de definir, ou “verde azulado”, como Andrade ainda queria. E quando tínhamos chegado a um consenso sobre a cor da calcinha, o balé de pernas simplesmente cessou. A “bailarina” juntando os joelhos fechou o celular, pediu a conta e saiu pela porta, atravessando a rua a passos rápidos e entrando num carro estacionado, que rapidamente desapareceu na primeira esquina, enquanto eu e Andrade ficamos totalmente em silêncio, como que nos culpando mutuamente.

Olhamos cada um aos nossos livros e em silêncio destrocamos os títulos, como nunca tínhamos feito antes. E nos despedimos sem uma palavra sequer, indo cada um para um lado da rua, com seu livro debaixo do braço. A vida, parece, tinha entrado em um carro e desaparecido minutos antes. Mas ainda tínhamos aos nossos livros e possivelmente em algum outro sábado de sol estaríamos de volta ali, naquele boteco sujo, onde a vida parecia existir. 

29/11/2012
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(Após a última leitura, o texto "definitivo" ficou assim. Apenas suprimi uma frase e algumas palavras) .  

Sobre Amigos e Calcinhas


No último sábado, um calor desgraçado desde o amanhecer, e eu ainda de cuecas tomava meu café, quando o telefone tocou. Era o Andrade, meu melhor amigo há quase 30 anos, convidando para uma "conversa molhada", como sempre se referia aos nossos papos regados a cerveja num "pé-sujo" do bairro. Andrade bebericava sua cerveja sem gelo e folheava displicentemente um livro quando cheguei, também com um livro debaixo do braço. Era uma espécie de código secreto, de senha, entre nós, desde quando nos conhecemos, essa coisa de aparecermos em nossos encontros sempre com livros, que no fim eram trocados e nunca mais destrocados. A minha senha daquele dia era: "Olga", de Fernando Morais, a do Andrade "Eu e Outros Poemas", de Augusto dos Anjos, que, por esquecimento e desleixo dele, já tinha sido minha senha há uns três anos atrás.

Nossas conversas sempre se iniciavam sobre os livros que usávamos como senha do encontro, mas naquele dia foi um pouco diferente, pois Andrade conhecia bastante a vida de Olga Benario, esposa de Luiz Carlos Prestes, morta durante a segunda guerra mundial, e eu sabia quase que de cor todos os poemas do único livro editado pelo poeta paraibano. Portanto, o prólogo daquele nosso encontro foi um tanto mais curto. E assim passamos muito mais rapidamente da literatura à vida real, segunda parte da nossa conversa, quando sempre falávamos sobre família, mulheres, filhos, essas coisas corriqueiras, mas essenciais. Afinal, como dizia sempre o Andrade parafraseando Oscar Wilde: "A literatura antecipa sempre a vida. Não a copia, amolda-a aos seus desígnios." 

“Ô, cidadão”, gesticulou Andrade ao dono do bar “manda outras duas, a minha sem gelo!”. Mas enquanto o homem abria as cervejas, algo mudaria o roteiro de nosso encontro. Uma mulher belíssima, usando uma saia minúscula e possuidora de um belo e longo par de pernas adentrou ao bar e sentou-se na mesa em frente à nossa. Andrade deixou cair os óculos sobre “Olga”, o homem do bar a cerveja sobre a mesa e eu, bem, eu deixei cair o queixo sobre Augusto dos Anjos. Ela, é claro, percebeu, mas disfarçou pedindo “uma água com gás, por favor!” Amaldiçoei minha cerveja e desejei que Andrade saísse dali correndo, levando a história da revolucionária judia para longe do bar. 

Mas Andrade não saiu. E começou a falar alto sobre as aventuras e sofrimentos da revolucionária, grifando verbalmente a palavra “mulher” constantemente. O sacana do Andrade queria mostrar o quanto ele tinha apreço e respeito por mulheres fortes e corajosas. Queria impressionar a dama sentada a nossa frente. “Entenda, meu amigo, que essa MULHER era de uma fortaleza incrível. Desde menina já se engajou nas fileiras anarquistas e comunistas na Alemanha. MULHER de fibra!”. Entretanto, a tática do Andrade parecia não surtir nenhum efeito, pois ela não tirava os olhos do celular, digitando uma mensagem, bebericando sua água com gás e cruzando e descruzando as pernas de um lado para o outro, num balé digno das mais dedicadas dançarinas do Moulin Rouge. 

“Ela foi uma das mulheres mais fortes da história da humanidade”, quase berrava Andrade “Uma vadia!”, sussurrei. “A Olga era uma vadia? Tá louco?”. “Estou falando da dona aí em frente, seu babaca!”. “Ah, sim... Mas então... O desgraçado do Getúlio mandou-a para as mãos dos nazistas, grávida..”. Hã, hã... É verde claro!”, disse eu. “O quê, cacete, o que é verde claro?”. “A calcinha dela. A calcinha dela é verde claro!”. “Da Olga?”. “Claro que não, estou falando da dona ai em frente... Ah, deixa de ser chato, Andrade!”. “Não, não é! É azul!”. “Hein? O que é azul?”.“A calcinha, a calcinha é azul...” Andrade deu uma gargalhada escandalosa que fez com que todos dentro do bar se virassem em nossa direção. Ou melhor, quase todos, pois a mulher, alvo da nossa atenção, continuava impassível, digitando no celular e cruzando e descruzando as longas pernas numa rapidez impressionante.

Quase saímos na porrada para definir a cor da calcinha da moça. E concluímos que era um tom entre o azul e o verde. “Azul esverdeado”, como achei de definir, ou “verde azulado”, como Andrade ainda queria. E quando tínhamos chegado a um consenso sobre a cor da calcinha, o balé de pernas simplesmente cessou. A “bailarina” juntando os joelhos fechou o celular, pediu a conta e saiu pela porta, atravessando a rua a passos rápidos e entrando num carro estacionado, que rapidamente desapareceu na primeira esquina, enquanto eu e Andrade ficamos totalmente em silêncio, como que nos culpando mutuamente.

Olhamos cada um aos nossos livros e em silêncio destrocamos os títulos, como nunca tínhamos feito antes. E nos despedimos sem uma palavra sequer, indo cada um para um lado da rua, com seu livro debaixo do braço. A vida, parece, tinha entrado em um carro e desaparecido minutos antes. Mas ainda tínhamos aos nossos livros e possivelmente em algum outro sábado de sol estaríamos de volta ali, naquele boteco sujo, onde a vida parecia existir. 

30/11/2012

26/11/2012

Barata A Ferro e Fogo - Programa 1

Barata A Ferro e Fogo
Programa 1

Idéias a prova de balas... 
Produção e Apresentação: Barata Cichetto
www.abarata.com.br
15 anos de Sexo, Poesia e Rock and Roll... a ferro e fogo
Programa 1 - 26/11/2012
www.radioaferroefogo.com
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Abertura
Filosofia - Noel Rosa
Bloco 1
(Tema Aberto)
- T_Rex - Children of the Revolution
- Manfred Mann's Earth Band - Spirits in the Night
- Budgie - Bredfan
Bloco 2
(Crônica: "Hierophantes")
- Secos & Molhados - O Hierofante
- Patrulha do Espaço - Rolando Rock
- Big Balls - Direto Pro Paredão (Bem Brasil - TV Cultura 1996)
Bloco 3
Poesia: "Manifesto Pessoal Antropofágico")
- Pussy Galore - Kiss Of Death
- Frijid Pink - House of the Rising Sun
- Ethel The Frog - Eleanor Rigby (Beatles Cover)
Bloco 4
(Tema Aberto)
- Harppia - A Ferro e Fogo
- Full Time Rockers - Fuja de Mim
- Ravenland - Nevermore
Bloco 5
Crônica: "Desordem e Universo"
- Ash - Warrant
- Black Sabbath - The Illusion Of Power (Forbidden - Rough Mix)
- X Japan - Rose of Pain [Live Performance]
Bloco 6
(Crônica: "Como Cães e Humanos")
- Stan Getz - Bob Brookmeyer Quintet 1953 -  Fascinating Rhythm
- Miles Davis - Heavy Metal
- Vytas Brenner- Interludio
Encerramento:
- Uriah Heep - Lady In Black
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Backgrounds: Moda de Rock - Viola Extrema
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22/11/2012

O Crime Não Compensa! (A Poesia Também Não!)


O Crime Não Compensa! (A Poesia Também Não!)
Luiz Carlos Barata Cichetto

"De que está rindo, Martini? Você não é um louco, é um pescador!" - Randall P. McMurphy

O crime não compensa! A poesia também não! Em compensação... O crime é desnecessário... A poesia também. Poetas podem até ser criminosos, mas criminosos nunca serão poetas; e se isso é uma afirmação ou uma pergunta, depende da sua interpretação. Há poetas nas celas, pagando por crimes que não cometeram; há criminosos nas ruas pregando a poesia que também não cometeram. Poetas e criminosos são culpados ou inocentes; e isso também é uma pergunta ou uma afirmação, dependendo do tamanho da pena que imputas a cada um, Senhor Juiz. "O amor é a compensação da morte"... E a poesia, é a compensação do crime; e agora não é nem uma pergunta e nem uma afirmação, é uma metáfora. E as metáforas não são criminosas, como as realidades não são poéticas. 

Mas antes que eu adentre a cela, preciso saber, tal um personagem Kafkiano, de que crimes sou acusado. A que penas fui condenado eu já sei, mas ainda não sei se a prisão é perpétua e também não conheço a acusação. Quero um advogado, um tribunal sem exceção e um júri sem corrupção. Andem com esse processo que eu tenho pressa, preciso ainda escrever um romance antes de morrer. E posso jurar, até em nome de um deus em quem não acredito, falar a verdade, somente a verdade e nada além da verdade, sob pena de perjúrio, que nenhum crime cometi. A verdade, somente a verdade, é que a verdade é que eu menti quando disse que nenhum crime cometi, pois sou poeta e ao escrever um poema cometo crimes sem perdão. 

E meus crimes não são pequenos, são crimes hediondos, e para que seja feita justiça mereço ser jogado a mais fétida das celas e esquecido pela multidão. Sou réu confesso, sim sou culpado, Meritíssimo. Culpado de ser poeta, culpado de minha inocência, culpado por atirar sem remorso nas cabeças dos tolos inocente, estourando-lhes sem pudor os miolos. Sou culpado de não ter culpa, culpado de não culpar a ninguém por minha culpa. Sou culpado!  Então acabemos logo com esse julgamento e me jogue de uma vez dentro da cela junto aos mais perigosos criminosos. Pois sei que a poesia não compensa...

Porque insisto nessa pregressa vida de crimes? Crimes sem perdão? O criminoso busca o quê, com seus crimes? E o poeta com os seus? O que buscamos, nós os poetas e criminosos? A alma das pessoas? A glória de ter cometido nossos crimes? A satisfação dos mais sórdidos desejos que habitam a mente humana? O desejo de imitação dos deuses, tendo em nossas mãos as vidas das pessoas? O que buscamos, além da satisfação pessoal, do desejo carnal e da glória banal, dos recortes de jornal, dos programas vespertinos de televisão? O que buscamos, nós poetas e criminosos, com nossos atos? A impunidade nos alimenta, a corrupção nos compra e a morte nos une. 

Estamos ambos mortos desde o nascimento e, portanto não damos atenção às regras. E sempre, mesmo que ainda pelas ruas, acabamos presos.  Dentro de nós mesmos, dentro de nossos medos, aprisionados pelos nossos inconfessáveis segredos. Prisão perpétua, domiciliar, a pão e água. O crime prescreve ao longo de um tempo, mas a poesia nunca prescreve. Poesia não prescreve, poesia é proscrita. Crime inafiançável. Poetas são ladrões de sentimentos, assaltantes de angustias e falsários de dores. Poetas, entretanto não matam, apenas o tempo que lhes consome dentro dessa perpétua prisão. Somos idênticos, afinal, pois trabalhamos contratados pela mesma senhora e, cada um a seu modo e com sua arma, executa o serviço ao qual foi contratado. É a morte a nossa senhora e a ela servimos como mercenários vorazes, cumprindo nossa missão. E no fim sabemos que a morte não nos dá nenhuma compensação, a não ser a sensação de que para com ela cumprimos nossa obrigação.

21/11/2012

Escrevo Como Quem Sonha e Sonho Como Quem Escreve


Escrevo Como Quem Sonha e Sonho Como Quem Escreve
Luiz Carlos Barata Cichetto


Eu escrevo como quem sonha e sonho como quem escreve! E assim, entre o sonho e a escrita, caminho. Não há flores! Tenho uma imensa fortuna, mas também tenho uma divida imensa comigo mesmo e o saldo, o produto, é o que escrevo. E escrevo feito um viciado, feito um esquizofrênico que não consegue se livrar de suas vozes sob pena de morrer e não mais ouvi-las. Ou soma ou some, ou some ou some, some ou suma! Tenho habilidades, sensibilidades e amabilidades, mas a monstruosidade da escrita arrebata minhas forças e o que sobra e o que me cobra é a voracidade. O tempo voraz e consumista consome-se a sim mesmo, a podridão é meu destino, e eu não sei como fugir da sina que me atina a sorte de não acreditar na sorte. A morte é a sina, assina a sentença, assassina! Assina a sentença assassina. Sou um escritor de mãos cheias, mas trêmulas e calejadas, um escritor sem livros nem glórias. E apenas de histórias estão cheias as minhas panelas. E tenho fome e as mato com palavras. E minhas janelas tem vidros sujos, as portas com trincos emperrados. E enquanto lhe conto histórias, irrisórias histórias, inglórias estórias, compras um carro e zombas de mim. E eu, num trem apertado, lotado, sempre atrasado, vou contando casas, ruas e avenidas que passam, histórias, enfim. Estou cansado de escritos, descritos, restritos. Proscritos. Eu bem que trocaria um monte de histórias por algum dinheiro, por algo mais sólido do que histórias, algo mais líquido do que sonhos. E poderia até mesmo ser algo mais gasoso do que esperanças. Eu bem que trocaria um par de histórias por um par de luvas no frio. Mas eu sei, fui eu que comecei! E não sei... Terminar. E no fim eu bem que trocaria uma centena de minhas histórias por uma, apenas uma noite sem histórias, sem sonhos. Mas eu, que apenas escrevo como quem sonha e sonho como quem escreve, conto desafetos, mortos fetos e desesperos. É o fim! Não mais começo, não há começos. Nem meios! Apenas o fim! Das histórias que escrevo.

20/11/2012

Edifício Joelma – Memória Viva


Edifício Joelma – Memória Viva
Luiz Carlos Barata Cichetto

Passava um pouco das oito e meia da manhã de uma sexta-feira comum em São Paulo. O dia era 1º de Fevereiro de 1974 e eu tinha descido no terminal de ônibus do Parque D. Pedro II e me dirigia ao inicio da Avenida Brigadeiro Luiz Antonio a fim de tomar um ônibus em direção a Avenida Paulista, onde faria uma entrevista para um novo emprego. A caminhada a pé, subindo pela Rua General Carneiro e cruzando o Largo São Francisco, local da imponente Faculdade de Direito demorara cerca de uns 15 minutos, quando atingi o Viaduto Brigadeiro Luiz Antonio, sobre a Avenida 23 de Maio. Estava um pouco atrasado e caminhava rápido quando o barulho ensurdecedor de uma explosão fez com que todos que por ali também caminhavam voltassem seus olhares em direção a um prédio imponente á direita do viaduto. Uma língua de fogo saia de uma das janelas, enorme e assustadora. E em poucas horas também se saberia: mortal.

As nove e pouco estava já no prédio da Avenida Paulista, onde era a sede de uma das empresas de maior projeção na época, a Caderneta de Poupança Delfin, para a minha esperada entrevista. Permaneci ali por pouco menos de duas horas e saí aprovado em meu novo emprego. Ao descer à ainda em obra Nova Paulista, que em breve se transformaria no centro do sistema financeiro brasileiro e no metro quadrado mais caro da América Latina, o transito caótico e as sirenes davam de fato a idéia de que algo de muito sério ocorria. E naquele momento tive a certeza de que aquela língua de fogo que vira pouco tempo antes tinha se transformado em algo dramático. Não tinha mais como apanhar um ônibus e fui caminhando em direção ao centro da cidade, pela Brigadeiro, que parcialmente interditada, era dominada por ambulâncias e carros de polícia e bombeiro subindo e descendo. Um cenário horroroso, com as pessoas andando rápido e falando alto, comentando pelas calçadas o "Incêndio do Joelma".

O Edifício Joelma, um prédio comercial no centro da cidade de São Paulo, junto à Praça da Bandeira e à Câmara Municipal. Foi inaugurado em 1971, com vinte e cinco andares, sendo dez de garagem, localizado no número 225 da Avenida Nove de Julho, com outras duas fachadas, uma para a Praça da Bandeira e outra para a Rua Santo Antônio. Assim que foi inaugurado, prédio foi alugado ao Banco Crefisul de Investimentos. As salas e escritórios dos escritórios luxuosos eram compostos por divisórias, móveis de madeira, pisos acarpetados, cortinas de tecido e forros internos de fibra sintética e um curto-circuito em um aparelho de ar condicionado no 12° andar deu início ao incêndio que rapidamente se espalhou. Ainda naquela época as leis não exigiam a construção de escadas de incêndio e muitas pessoas morreram queimadas dentro de elevadores, banheiros e parapeitos de janela. Mas a maior parte das mortes ocorreu no telhado do edifício.  Quase 800 pessoas trabalhavam no prédio e destas, oficialmente 188 morreram, embora muita gente acredite que esse numero tenha sido bem maior. 

Dois anos antes, um outro grande incêndio em edifício ocorrera, o do Edifício Andraus, também no centro da cidade e a existência de um heliponto no topo do prédio e muitas vítimas foram salvas por helicópteros que se aproximavam e as resgatavam. Com certeza, as pessoas que trabalhavam do Joelma lembraram-se disso e buscaram o terraço em busca de resgate. Entretanto, o telhado desse prédio era construído de telhas de amianto sobre uma estrutura de madeira, que transformou o local numa verdadeira churrasqueira humana. O vento forte, a fumaça e a falta de equipamentos básicos de segurança no local dificultou a ação do Corpo de Bombeiros e apenas cerca de cinco horas depois foi concluído o resgate dos sobreviventes.

Quando cheguei próximo ao inicio da Brigadeiro Luiz Antonio, mais precisamente no cruzamento com a Rua Maria Paula, próximo a Câmara Municipal de São Paulo, a fumaça tomava conta do céu. O som era de sirenes e de helicópteros que voavam ao redor do prédio em chamas sem conseguir se aproximar. Desci pela Rua Doutor Falcão e cheguei bem próximo. Pessoas gritavam, choravam, bombeiros corriam de lado para o outro. E na curiosidade típica de um garoto de 15 anos permaneci ali, olhando para cima, sem saber o que pensar e fazer. Simplesmente fiquei observando. Algumas pessoas seguravam faixas improvisadas com inscrições como "Calma" e "Não Saltem". E vi pessoas desesperadas tentando se segurar ou descer em cabos de aço que sustentavam para-raios... E despencarem das alturas em direção a morte no chão. Outras, que conseguiam deixar o prédio, cambaleando, tossindo e com parte das roupas em chamas ou feridas sendo amparadas por médicos e bombeiros. Essas cenas nunca saíram de minha cabeça e nunca mais, a não ser que pudesse efetivamente ajudar, me aproximei de algo semelhante. Os jornais do dia seguinte estampavam fotos pavorosas e ainda tenho na cabeça a capa do Jornal Folha de São Paulo mostrando o telhado do Joelma com dezenas de corpos queimados e mutilados.

Durante os anos seguintes sempre passava pelo local e acompanhei quase que diariamente as obras de reconstrução do prédio. Em 1977 conheci uma mulher que era uma das sobreviventes e que, mesmo depois de inúmeras cirurgias plásticas, ainda mantinha no rosto e nos braços as cicatrizes da tragédia. Na mente ainda as lembranças de amigos e amigas que vira morrer ao seu lado, pisoteados ou queimados e a sensação de culpa por ter sobrevivido. Era uma pessoa amarga e cheia de traumas, a ponto de entrar em crise de choro apenas com a visão de um fósforo aceso. Ela perdera o namorado e vários colegas de trabalho naquele dia e nem as terapias psicológicas conseguiam livrá-la do trauma daquela tragédia.

Ainda naquele ano, foi instaurado um processo criminal que acabou apontando a Crefisul e a Termoclima, empresa responsável pela manutenção elétrica, como principais responsáveis pelo incêndio. A conclusão foi que o sistema elétrico era precário e estava sobrecarregado. Aquela explosão e a língua de fogo saindo pela janela que eu presenciara teria sido, segundo relatos, um aparelho de ar condicionado que explodira. Além disso, os registros dos hidrantes do prédio estavam inexplicavelmente fechados, apesar do reservatório ter capacidade para 29.000 litros de água. A tragédia, seguramente uma das maiores na cidade, forçou as autoridades a rever as leis que regem a construção civil, obrigando a construção e escadas de incêndio e instalação de portas-corta fogo, entre outras, o que fez com que esse tipo de ocorrência fosse se tornando cada vez mais rara.

Vários filmes e documentários foram feitos sobre a tragédia do Joelma. Ainda naquele ano, foi lançado o filme "The Towering Inferno" (Inferno na Torre), estrelado por Steve McQueen. Os produtores negam, mas a história embora fantasiosa, conta sobre o incêndio de um enorme edifício por negligência com o uso de material elétrico abaixo das especificações. Na época se especulou que inclusive cenas reais do incêndio do Joelma teriam sido usadas na produção cinematográfica. Em 1979 é lançado o filme "Joelma 23º Andar", baseado em livro do médium Chico Xavier, no qual é contada a história de uma garota que morreu no incêndio. Neste como em muitos outros filmes e documentários produzidos, são usadas cenas de arquivos de emissoras de TV. Em um deles, numa tomada de câmera que mostra pessoas ao redor do prédio, aparece a imagem de um garoto olhando para cima, no momento imediatamente anterior a queda de um homem que se segurava no cabo de aço. Sou eu, esse garoto.

Durante o incêndio, 13 pessoas tentaram, mas não conseguiram, escapar por um elevador. Os corpos não identificados foram enterrados lado a lado no Cemitério São Pedro. Esse fato acabaria sendo a inspiração para o chamado "Mistério das 13 Almas Benditas", a quem são atribuídas diversos milagres. Muitas histórias ainda endossam a "Maldição do Joelma", afirmando que o terreno onde o prédio foi construído seria amaldiçoado, especulando-se que ali, até o final do Século XIX teria sido um pelourinho e que fantasmas de negros rondavam o local. Uma outra história de assombração alimentaria ainda mais o mito dessa tal Maldição, o caso conhecido como "Crime do Poço". 

Em 1948, havia naquele terreno uma casa que pertencia ao professor Paulo Camargo. Com ele moravam a mãe e as irmãs que ele teria matado e em seguida sepultado num poço construído no fundo da casa para esse fim. A polícia na época trabalhou com duas hipóteses que seriam os motivos do crime: a primeira seria o fato da mãe e das irmãs não terem aprovado uma namorada dele e a outra de que a mãe e as irmãs estivessem muito doentes e o professor não quisesse cuidar delas. A polícia descobriu o crime por meio de denúncias relatando o desaparecimento de inúmeras mulheres no local. Descoberto, o professor se matou. O fato é que estas e outras lendas aliadas com a idéia de se estar no lugar de uma tragédia tão imensa, fez com que, mesmo depois de reformado e se transformar num prédio extremamente seguro, o Joelma nunca teve sua ocupação total.

Acostumados às tragédias modernas, não nos damos conta da imensidão de algo como o incêndio do Joelma, mas há praticamente quarenta anos, ela consternou uma cidade inteira, paralisando-a por completo e durante muito tempo gerou pavor nas pessoas, a ponto de muitas pessoas terem mudado de emprego e residências em prédios por medo. A tragédia ficou encalacrada nas mentes de todos durante muitos anos e até agora, ao recorrer às imagens, cenas e sons daquele dia de Fevereiro de 1974, uma sensação de desespero e dor tomam conta de mim. O cheiro daquela fumaça misturada ao de corpos humanos queimados, o som das sirenes e dos gritos e choros, e as cenas de pessoas caindo ou se jogando de um prédio em chamas, ainda estão vivas em minha mente. E sempre estarão.

A Contramão da Contramão

A Contramão da Contramão
Luiz Carlos Barata Cichetto



O escritor Anthony Burgess, autor entre outras coisas do livro no qual foi baseado o filme "Laranja Mecânica", escreveu certa ocasião, a respeito do que seria o leitor seu ideal: "um músico católico não praticante e fracassada, míope, daltônico, auditivamente tendencioso, que tenha lido os livros que eu li. Ele também deve ser sobre a minha idade." Dono de um pensamento impar com relação à sociedade humana, Burgess tenta a meu ver entender, não definir, o perfil de seu leitor.

"No fundo estamos condenados ao mistério. As pessoas dizem, eu gostaria de sobreviver além da minha materialidade... Eu não acredito que vá sobreviver, mas, pelo menos na memória dos outros, você sobrevive..." Fernando Henrique Cardoso 

Claro que um paralelo entre um escritor com milhões leitores e exemplares de livros vendidos e lidos no mundo inteiro, por décadas e décadas e um escritor com uma quantidade de leitores que não encheria uma “Kombi” e que vendeu meia centena de exemplares de cada um de seus livros pode parecer presunção deste último. O primeiro é um sucesso literário, e o segundo? Também! E também, sim, pois ao realizar sua obra, publicando seus escritos não da forma tradicional e única nos anos em que o primeiro viveu, o segundo é autor de milhares de poemas, centenas de crônicas e uma produção constante durante 40 anos, embora em muitos momentos a tenha deixado em segundo plano, em detrimento de atos menos nobres mas mais humanos como criar filhos.

Sou daqueles que tem muito mais textos escritos que leitores. Afinal, nos dias correntes, existem mais escritores que leitores. Basta uma simples olhada no Google para se encontrar milhares e milhares de sites e blogs de pessoas que se consideram poetas e escritores. Editores de textos facilitam a tarefa. Nada daquela coisa chata de escrever um texto a mão, reescrever, datilografar, usar corretivo, re-datilografar, corrigir. Tudo agora é mais fácil, até mesmo o Corretor Ortográfico facilita o trabalho, impedindo erros absurdos. Escrevedores não escrevem errado, afinal, cometem "erros de digitação", e o mágico programinha corrige automaticamente. Particularmente ainda uso antigos métodos como desenhar o esqueleto de um texto no papel, anotar as idéias mentalmente e rascunhar ainda usando caneta vermelha (odeio a azul, me lembra os tempos de escola), depois digito tudo usando o Bloco de Notas, que por não ter nenhuma função adicional, nem botões para desviar a atenção, e é que mais me parece com a velha “Olivetti Valentine”, minha máquina de escrever.

E quanto ao restante, sim é possível viver, embora esse viver na contramão tenha um alto custo não apenas para quem o abraça, quanto para quem está do lado. É um fardo pesado, um preço alto. Em outras palavras, quando se tem um pensamento na contramão, mas é um FHC, por exemplo tudo se torna mais fácil, agora quando se pensa da mesma forma e se é simplesmente Luiz Carlos Barata Cichetto, a coisa muda. A gente acha, por outro lado, que o sistema se incomoda com a gente. Mas isso não é verdade. Eles estão pouco se fodendo pra gente. Incomodamos? Não... Ou apenas como uma mosca mesmo. Um tapa e fim. Mas de qualquer forma é importante sobreviver, acreditar que podemos. Enfim, viver por si e a partir de si. Se fizermos um coquetel dessa nossa postura underground com as idéias de Ayn Rand? O que teremos?

Mas retornando a questão do perfil de leitor, pode se imaginar que é mais fácil definir o perfil de seu leitor quando é pequeno esse numero. Mas, ledo engano, meu querido leitor (está vendo, eu tenho ao menos um leitor: você!) E então espero, não por imposição, mas por necessidade de uma troca, entender quem és. Afinal sabes um tanto sobre mim, como eu penso e muito do que sou através do que escrevo. Mas e quanto a você, eu não conheço absolutamente nada. E fico imaginando o que pensa e porque ama ou odeia o que escrevo. Quem é você, afinal, meu único leitor? Mas não seria outra a pergunta, tipo como eu gostaria que você fosse? Vou tentar responder as duas perguntas em apenas uma resposta.

Acredito que por simplificação, mais do que por desejo, o leitor de meus artigos são pessoas iguais a mim, então bastaria que eu traçasse nestas linhas meu próprio perfil e estariam respondidas as duas perguntas. "Ateu não por opção, mais de cinquenta anos, belo nível cultural, apreciador de Rock, depreciador de musica comercial; expansivo, corrosivo; fumante total, bêbado eventual..." Entretanto um perfil meu, servindo de perfil alheio seria simplista demais, vago demais e perigoso demais, pois limitaria o "padrão" do meu leitor a mim mesmo é mais uma meia dúzia de pessoas... Exatamente como realmente ocorre. Enfim, não tenho a resposta a respeito do perfil de quem me lê. E nem quero ou pretendo, pois o que espero é a pluralidade, a diversidade dos seres humanos à despeito das regras que empacotam serem humanos depois de homogeneizados e os despacham. E do mesmo jeito que não escrevo como produto, não escrevo para produtos. 

19/11/2012

Desordem e Universo


Desordem e Universo
Luiz Carlos Barata Cichetto


A bandeira, Ordem e Progresso... A minha bandeira não é essa, minha bandeira é o Universo. Do verso. Em minha bandeira, grafado em letras enormes está inscrito: Desordem e Universo. Universo em desordem. A desordem no Universo causa o verso. Poesia é desordem. Reverso. Empunho minha bandeira, carrego nas cores da minha bandeira. Vermelho, preto, amarelo, minha bandeira também tem outras. São tantas que não cabem dentro de um pedaço de pano, preso por um mastro e hasteado em dias de festa nas portas das escolas e repartições públicas. Minha bandeira não tem mastro. É o mastro. Mastro, caneta, falo erguido. Maestros empedernidos regendo com as mãos um hino em homenagem ao Universo. Desordem. Reverso. Universo. Bandeiras não representam países, representam espelhos. E a minha bandeira é o espelho da minha alma. Verso, reverso, universo. Desordem. Acordem carregadores de bandeira. Anarquia, poesia e um pouco de sal e água. O soldado desfralda a bandeira, o poeta desfolha a poesia. Mas poesia não é bandeira. E no universo do teu corpo há mais poesia que em qualquer bandeira. Não há poesia em bandeiras. Há bandeiras demais na poesia e eu não acredito em bandeiras. Aliás, nem em poesia eu acredito. Acredita? Não, não acredite! O dia amanhece no quartel enquanto o soldado de farda verde oliva caminha em direção ao nascer do Sol. É a mesma dança há mais de cem anos. Cem anos de solidão e... Só lhe dão bandeiras e exigem a Ordem e o Progresso. Regresso ao que era antes da bandeira. Antes da bandeira o desejo e antes do Progresso vem a Ordem... E onde é que eu me encaixo? Embaixo? A alegria é a prova do que? Noves fora, nada. A prova de matemática. Minha terra tem palmeiras e flamengo, e futebol é uma merda, bandeira de tolos. E então levanto uma bandeira, em posição de sentido, mão no peito que estou sentido. Dói o coração e foda-se a bandeira. Foda-se a ordem e foda-se o progresso. E não escuto as estrelas coladas com cola de sapateiro na bandeira nacional. Odeio Carnaval, Futebol, Mangueira, Samba e Morro. Odeio bandeiras! Fodam-se as bandeiras. Na Desordem do Universo. Desordem e Universo.

19/11/2012

17/11/2012

Minha Pátria é Língua Morta, Minha Língua é Pátria Viva


Minha Pátria é Língua Morta, Minha Língua é Pátria Viva
Luiz Carlos Barata Cichetto

Minha pátria não é minha língua, minha língua é que é minha pátria. E falo em língua não como pátria, mas como pária. Minha pátria é língua morta e viva a minha língua. Língua Pátria, pátria mãe gentil... Pátria armada dos gentios. E falo isso, na primeira Pessoa, não na de Fernando, mas na minha. Minha língua é o que eu falo e minha pátria é meu falo. E falo do meu falo como se fala da sua falência. Fala falha, língua falha, pátria falha. E danem-se as regras, de menstruação, de um idioma, quero a língua não a pátria, que se dane a bandeira, que se danem os limites geográficos, falo com quem me entende, sem tradução. Nada nem ninguém traduzem a minha língua. Dou com língua nos dentes, sou indiscreto, nada secreto e pago a língua, que me chamem de língua de trapo, aos trapos a língua dos tolos. E não mordo a língua por desejar que se danem. E o que me importa Caetano e suas caetanias hereditárias, que me importam os joões, nem os gilbertos nem os gis, nem vãos nem os vis. E se "a língua é espelho de uma nação", a minha nação é meu espelho... Quebrado. Do que reclamam de minha língua? E clama a minha língua? À míngua minha língua. A íngua e a metástase da alma. O câncer espalhado pela garganta do mundo. Minha pátria é minha fala, minha língua. Ortografia é um ser vivo, mas eu não vivo nem morro por ela. Nem sem ela. Que morra a ortografia, mas que viva a poesia. Reformemos a ortografia como se reforma um soldado: aposentadoria. Que morra a "última Flor do Lácio, inculta e bela”, mas que viva a língua. Que morra bela, mas não inculta. Que morra "desconhecida e obscura" antes que viva puta. Tenho a língua solta, a língua afiada, conversa fiada! Que morra a pátria, que viva a língua! Minha pátria é língua morta! Minha língua é pátria viva!


16/11/2012

A Condição do Escritor, no Incômodo Limite Entre o Ser e o Estar


A Condição do Escritor, no Incômodo Limite Entre o Ser e o Estar
Luiz Carlos Barata Cichetto

"Civilização! Você alardeia isso como a maior conquista do Homem! Não é nada, apenas uma consequência da fraqueza humana! O Homem é frágil demais, uma criatura indigna demais para viver em seu próprio meio. Ele precisa, como alternativa, se escorar em sua civilização, seu aprendizado. Minha raça aprendeu a viver no mundo real, a se fundir com o meio. Não precisamos de civilização. O Homem é um aleijado que ostenta sua enfermidade, orgulha-se de suas muletas. Vocês fogem para trás das muralhas de sua civilização porque vocês são fracos demais para colocarem-se diante da natureza como parte do ambiente natural. Ao invés de viver como um parceiro da natureza, o Homem se esconde atrás da civilização, amaldiçoa e desafia a vida de verdade, distorce seu meio para acomodar os próprios defeitos. Tome cuidado para que o seu meio não contra-ataque por conta de todas as suas blasfêmias, pois nesse dia a humanidade será extinta como a aberração que o Homem é!" - Gigante Dwassllir discutindo com Kane em Two Suns Setting, de Karl Edward Wagner.

Por aquelas estranhas coincidências, que muitos chamam de sincronicidade, dois textos caíram sob meus olhos e me impressionaram nos últimos dias. O primeiro, acima, colocado na boca de uma personagem de um livro de fantasia chegou depois, quando eu ainda pensava sobre um outro que muito tinha me impressionado, e que continha a seguinte declaração: "Na realidade, é difícil saber o que o escritor criativo realmente pensa, pois ele se esconde atrás de suas cenas e de seus personagens. E quando os personagens começam a pensar e a expressar seus pensamentos, não se trata, necessariamente, dos pensamentos do escritor." Essas palavras são de Anthony Burgess, no célebre artigo publicado em 1973, denominado "A condição humana, no incômodo limite entre o bem e o mal". O artigo é fantástico, mas o texto acima, a mim demonstra que o autor de "Laranja Mecânica" estava errado nesse ponto. Está claro aqui que o autor Karl Edward Wagner colocou deliberadamente seu pensamento mais intimo e intenso na boca de uma personagem, o gigante Dwassllir. E ai ainda sustento isso, com uma alegação da qual sou partidário que todo autor, mesmo o de ficção é autobiográfico, ou seja sempre coloca disfarçadamente ou não pedaços de seu pensamento na boca de personagens. É uma analise extensa, mas acredito que talvez um autor de ficção seja meio covarde ou comodista para expor suas idéias através de outras formas, como o ensaio, a crônica, ou mesmo a poesia e o faça usando personagens como escudos. E afinal, um Homem criou e alimenta um monstro chamado Civilização e precisa dentro dela criar e alimentar outros pequenos monstros. Como os escritores de ficção.

Logo no primeiro parágrafo, Burgess escreve: "Sou, por ofício, um romancista. Acredito tratar-se de um ofício inofensivo, ainda que não venha a ser considerado respeitável por alguns. Romancistas colocam palavras vulgares na boca de seus personagens e os descrevem fornicando e fazendo necessidades. Além disso, não é um ofício útil, como o de um carpinteiro ou de um confeiteiro." Durante parágrafos adiante, o autor sugere que as palavras de romancistas não devem ser levadas a sério "Nenhum criador de enredos ou personagens, por maior que seja, deve ser considerado um pensador sério, nem mesmo Shakespeare", arrematando o pensamento. Decerto que há de se separar bem as coisas e retirar dos romances e das novelas, das obras de ficção enfim o que é pensamento e o que é simplesmente passatempo. Em outras palavras, o que é "sério" do que é "divertimento", seguindo o autor que até hoje é citado como autor que, em contraponto às idéias de outros pensadores e mesmo romancistas, acaba por colocar que o ser humano precisa de seu livre arbítrio intacto para que, mesmo com o risco desenvolver a "maldade", possa por outro lado desenvolver a "bondade". As torturas impostas a e por Alex, narradas por esse cristão, pouco tem de fato de romance, embora no filme a característica de "historinha" esteja bem caracterizada. O livro, aliás lançado há cinquenta anos, em 1962 quando o mundo vivia ainda sob a euforia da reconstrução mundial pós Segunda Guerra Mundial e começava a dar passos em direção á Era da Paz e do Amor, fruto desse mesmo trauma, é sem dúvida um retrato fiel do pensamento de seu autor, disfarçado. E não há demérito nenhum nisso. Demérito há, sim, no citado artigo, quando ele tenta diminuir o valor do pensamento de um romancista de forma geral. 

Claro que existem casos e casos e talvez, ao tentar apontar o dedo usando a si próprio como alvo, ele na verdade queira atingir a escritores que realmente não devam ser levados a sério. Provavelmente ele tenha usado a analise inversa que é utilizada quando se afirma que quando apontamos o dedo a alguém existam outros três apontados a nós mesmos. É possível que ele tenha de propósito ou casualmente deixado apontado os três dedos a si mesmo querendo atingir um alvo maior que eram os outros. Autores de "best sellers" normalmente se enquadrariam naquilo que Burgess afirma, mas acredito ainda que mesmo nestes, existe ainda o pensamento de seus autores. São importantes e devem ser ou não levados a sério?  Acho pretensão demais, mesmo para um autor como ele tentar responder essa pergunta, pois estaríamos nesse ponto colocando numa única vala, comum e fedorenta, todos os escritores. Se milhões de leitores acham o máximo do pensamento escamoteado sob mantos e bocas de bruxas e seres imaginários, de um autor medíocre como Paulo Coelho, expressos em romances simples e até mal escritos, por exemplo, qual é o erro?

O esperto romancista nunca afirma que ali existe o seu pensamento, mas o leitor é sempre induzido a pensar que é. Mas a imensa maioria dos leitores sabe disso no seu intimo e tanto que é comum citarem frases atribuídas a personagens de livros como sendo pensamentos de seu autor. Principalmente o leitor mais contumaz conhece isso muito bem, mas no momento da leitura abstrai o pensamento e imagina o pensamento com a voz, a roupa e a personalidade da personagem. Mas ele sabe disso, sabe da verdade. E o autor mais astuto também. É um belo truque literário, pois desta forma, se o pensamento for "correto" será atribuído ao autor, se não é lembrado como da personagem... Ou completamente esquecido. Também dessa forma, o autor se livra de responsabilidades de toda ordem e não se compromete com nada, pois afinal não é ele quem pensa ou diz ou faz determinadas coisas, mas as suas criações. E assim, todos vivem felizes para sempre. Como nos romances.

Há também que se levar em conta o fato que nem todos os escritores são jornalistas. Estes, quando se tornam escritores, por força do oficio tendem a exagerar no fato e não no pensamento. E mesmo num romance tendem a se colocar como retratistas e não como pensadores. Induzidos pelas engessadas regras ditadas séculos a fio pelas redações de jornais, o jornalista-escritor normalmente mantém o foco sobre fatos e mesmo quando expõe idéias, normalmente não são suas mesmo. Não que, absolutamente, um jornalista não tenha idéias próprias, que seja um autômato que apenas repete o que vê, lê ou escuta, mas na maioria das vezes ele, inconscientemente, se deixa levar pelo sistema que limita o fato em si e a imagem dele, em detrimento do pensamento. Do mesmo jeito que um médico ao exercer o ofício de escritor, fatalmente irá privilegiar os fatores biológicos por trás de uma doença e não os fatores sociológicos e psicológicos que a geraram. Mas não quero de forma alguma estabelecer regras de leitura, nem muito menos estabelecer padrões de escritores. Claro que um jornalista ou um médico podem ser fantásticos escritores, desde que se livrem de seus estigmas, mas mesmo que não façam ainda podem ser ótimos, se assim seu publico o aceitar.

E quem conhece o caminho correto das mentes dos leitores? Há uns dias atrás, quando participei de uma oficina com o jornalista e escritor Paulo Markun, este contou a história de um livro que tinha sido encomendado a uma figura publica que não era escritor, ligado á área de esportes. A primeira versão, segundo o editor estava "mal escrita". Foi sugerida a "ajuda" de um "profissional" que reescreveu o livro, versão com a qual o autor original não concordou. O editor então lhe deu liberdade para alterar o livro, que segundo avaliações iniciais teria ficado pior que a primeira versão. Resultado: esta ultima versão vendeu absurdos. Cito este fato pelo mesmo ter me deixado com uma pulga gigante atrás das (duas) orelhas, me fazendo pensar sobre o que é realmente bom para o leitor mediano e principalmente imaginar o quanto o escritor, em seu trono realmente é tido como rei pelo leitor. Até que ponto um livro tido como "bem escrito" por um editor é mesmo bom ao seu eventual comprador? E até que ponto o contrário ocorre? 

Nos tempos correntes, onde nascem mais escritores que crianças, onde brotam mais poetas nos jardins do que grama, temos que pensar sobre essas questões. Estamos quase que escrevendo uns para os outros e os que ficam de fora disso é porque não se enquadram nem em uma categoria, a dos escritores, como na outra, a dos leitores. E então, retornamos ao ponto inicial deste artigo, que é sobre até que ponto pode ser avaliado o pensamento expresso em um romance, na boca de um personagem, como sendo o do autor. O que existe de fato na literatura atual não seja talvez o excesso de pensamento de autor disfarçado e seja isso a razão pela qual todos se sentem no direito, e até mesmo no dever, de se proclamarem escritores? 

Acredito que aí estejam nossas respostas a essa questão. Um escritor genial sabe separar seu próprio pensar do personagem e consegue até mesmo construir pensamentos contrários aos seus no intuito de melhor construir uma história. E o faz com tanta maestria e precisão que seu leitor saberá distinguir uma coisa da outra. Seus personagens, desta forma, se tornarão vivos e independentes, livres do seu criador que também não se tornará prisioneiro da criação, deixando principalmente o leitor livre para seus próprios pensamentos e interpretações. Esta a meu ver é o que faz a diferença entre o genial e medíocre, pois este na ânsia de expor seu pensamento, mas sem a coragem de fazê-lo de outra forma, constrói personagens "a sua imagem e semelhança", aprisionando um dentro do outro e fazendo o pior, que é manter preso o leitor dentro de um espelho que ele jamais teria coragem de encarar. Enfim, toda obra é autobiográfica, no sentido de que seu autor impõe a ela componentes de sua existência, mas como fazer isso sem transformar um romance num desfile de egocentrismo é o que separa o gênio do embusteiro.

Leia Também o Texto de Anthony Burgess na Íntegra, em Português:
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,a-condicao-humana-no-incomodo-limite-entre-o-bem-e-o-mal,958141,0.htm

15/11/2012

A Republica da Fome Agradecida


A Republica da Fome Agradecida
Luiz Carlos Barata Cichetto
"Chamávamos o tabuleiro de xadrez de branco - chamamo-lo de negro" - O bispo Blougram no poema de Robert Browning

Nos últimos tempos tenho sofrido inúmeros ataques por conta de minha opinião publicada em textos a respeito da questão de cotas e privilégios. Claro que sou atacado, ofendido, ameaçado até, mas muito, muito pouco compreendido. Até entendo a maioria dessas pessoas que não concordam com minha opinião, embora não entenda e não aceite ameaças e ataques pessoais. E digo que entendo essas pessoas, porque a maioria delas tem, digamos o rabo preso com uma ou outra situação, sendo na maioria dos casos, beneficiários dessas cotas e privilégios. E ninguém é burro para ser contra algo que lhe favorece, claro. Mas é justamente isso que faz com eu me sinta clara e francamente à vontade para criticar. Apenas para me situar pessoalmente: não estou obviamente grávido, não tenho mais de 65 anos, não sou negro ou descendente, não tenho nenhum problema de obesidade ou deficiência física, não sou doador de sangue pois tenho o vírus da hepatite B, não sou portador de AIDS, não sou militar, nem funcionário publico e muito menos detento. Também não curso nem cursei faculdade por programas do estado, não tenho carteirinha de estudante, nem falsa nem verdadeira e não recebo uma moeda de nenhum programa assistencial estatal e acho que ainda tem uns etceteras aí, pois são tantos os privilegiados, que posso fatalmente ter esquecido de alguma coisa.

Antes de qualquer coisa, quero começar minha explanação a partir da "Constituição da Republica Federativa do Brasil". Logo no seu Art. 2º, a Carta Magna proclama o seguinte, no artigo "IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.", para logo a seguir no Art. 5º. estabelecer que "Todos são iguais perante a lei".  Então, se todos são iguais e um dos princípios fundamentais é o de "promover o bem de todos, sem preconceitos..." essas tais leis que estabelecem privilégios não estariam em desacordo com a Constituição? Não sou advogado e não vou ficar aqui tecendo análises jurídicas sobre o texto, mas a mim é muito claro que essas leis são sim, na essência, preconceituosas e causadoras de desigualdades. É também muito claro significado da palavra "privilégio", que é o de dar a um o tratamento diferenciado, melhor que a outro, estando, portanto, configurada uma afronta ao apregoado “promover o bem de todos“. Sempre que leio essas partes da Constituição e observo o atual estado de coisas, minha memória vai diretamente até a "Revolução dos Bichos", de George Orwell, onde as sete leis do "animalismo", outrora criadas com o objetivo do bem comum são aviltadas e transformadas, ao bel prazer dos porcos legisladores em apenas uma: "Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros." 

Da forma como essas leis de privilégios e cotas foram feitas, o estado foge do trabalho de prover a educação e a saúde, de fiscalizar e punir os excessos e desmandos praticados pelo poder econômico. Em outras palavras, em lugar de, por exemplo, criar escolas e dar uma educação publica de igual qualidade a todos, exigindo a contrapartida do aproveitamento do aluno com rígidos exames e pagando condignamente aos professores, cobrando-os também qualidade, criam cotas em universidades para estudantes de escolas publicas. E isso, aliado a “progressão continuada” tem por resultado alunos que terminam faculdades em a menor capacidade, nivelados por baixo. Um ciclo vicioso que gera numa escala crescente a falta de capacidade profissional que irá alimentar um mercado de trabalho cada vez mais exigente. Em outras palavras, formam burros com diplomas, que nada mais terão a que servir a não ser puxar a carroça das estatísticas estatais. Em outra instância, em lugar de prover a todos os cidadãos uma saúde publica de qualidade, onde todos serão pronta e eficazmente atendidos, criam leis de privilégios baseados em critérios totalmente sem sentido na questão de saúde, onde o único quesito que pode e deve agilizar o atendimento é a gravidade e a urgência do problema clínico, não a idade ou condição social. Sou partidário de que as únicas duas coisas que deveriam ser estatizadas e serem apenas de competência do Estado, seriam a Educação e a Saúde, mas isso é assunto para outra matéria. 

Seria também papel do Estado não prover o transporte público, mas apenas o de fiscalizá-lo e estabelecer políticas de custos e metas de atendimento e qualidade, baseados puramente em critérios que atendam as necessidades dos usuários.  Isso significaria na pratica que o Estado deveria obrigar os fornecedores de transportes públicos a oferecer condições dignas, transportando as pessoas não como mercadoria, mas como seres humanos, com certo grau de conforto. E, portanto, não seria necessária a criação de bancos especiais, por exemplo. Muitos dirão que em uma grande metrópole transportar todas as pessoas sentadas, causaria congestionamentos gigantescos pelo numero de ônibus e trens necessários a isso, mas eu retruco com o seguinte: é necessário mudar radicalmente a postura e a visão com relação ao assunto, pois enquanto não houver uma política geral de transportes coletivos e sim o transporte coletivo sendo tratado como política geral, deixando de privilegiar o transporte individual em detrimento do publico, estaremos sendo conduzidos dessa forma.

Tomo como exemplo essa questão do transporte coletivo, que acredito ser um dos mais claros para ilustrar meu pensamento, embora outros, como a política de cobrança de tarifas de serviços essenciais também pudessem ser usados. Dentro do sistema de transporte coletivo, pessoas acima de uma certa idade, portadores de determinadas doenças, grávidas, policiais, carteiros e uma infinidade de outros privilegiados, além de terem lugares reservados não pagam por suas passagens, e isso faz com que o restante dos passageiros transportados acabem indiretamente pagando, pois é claro que não é do caixa da empresa de ônibus ou trem que irá sair isso. E aí pergunto: é justo? Ah, os pseudo-socialistas hipócritas irão afirmar que sim, que a pessoas com melhor poder aquisitivo tem que bancar o restante, que isso seria "justiça social" e essa balela toda. Este pensamento é torto e equivocado e por isso mesmo serve como ótimo exemplo a minha critica ao sistema de cotas e privilégios. Senão vejamos: primeiramente, os ônibus e trens deveriam circular de forma adequada a não permitir superlotação, com roteiros feitos não pelo interesses financeiros dos donos das empresas de ônibus e de interesses políticos, mas das necessidades dos usuários. Segundo, suas formas e estruturas deveriam acomodar com relativo conforto todas as pessoas, independente de seu estado de saúde, estatura ou peso. E com relação ao pagamento, todas as pessoas deveriam pagar pelo uso, o que reduziria sensivelmente o valor pago por cada um. Isto sim seria justiça social, o restante é o que é: privilégio. E quando existem privilégios, na outra ponta existem prejudicados. É uma matemática simples.

Uma das maiores criticas que recebo é a de que, ao me posicionar contra essas leis que criam privilégios e cotas, eu estaria tendo uma atitude "pequeno burguesa", defendendo indiretamente os ricos e a classe média. E afinal de contas, é considerado politicamente incorreto defender os ricos e a classe média. Em minha defesa: estou e não estou. Não defendo nenhuma classe social, pois seria isso um contra-senso, pois o que defendo é exatamente é o tratamento justo de todos, baseado nos princípios da Constituição. Mas o argumento usado por aquele que me detratam é que eu teria que obrigatoriamente, defender as classes mais pobres. Então faço duas perguntas: porque eu teria que fazer tal defesa? E principal: os pobres precisam da minha defesa, ou da de qualquer um? Essa argumentação é por si própria é o que denota de forma até inconsciente o cerne dessa questão de cotas e privilégios: os pobres seriam seres inúteis, precisando que eu ou qualquer outra pessoa "de fora" os defendam, seja sob a forma de um texto sem nenhum efeito prático, seja da forma de lei. Essa defesa dos "pobres" era moda no chamado "Cinema Novo", onde a pobreza e a miséria fez o nome de muito cineasta medíocre. Pobres não precisam de defesa e sabem muito bem se defender e criar seus próprios caminhos. Ademais, para todos os efeitos, eu também sou pobre, não tenho casa própria nem carro, nem bens nem dinheiro guardado no banco. Trabalho de manhã para comer a tarde. E sempre digo, não sou pobre, estou pobre. E não aceito nem preciso de nenhuma cota ou privilégio, não me utilizo de nenhuma "bolsa-alguma-coisa".

A atual política Estatal, estabelecida com intuitos muito menos nobres do que aparenta, acabou por criar o que dei o nome de "Republica da Fome Agradecida", pois em lugar de dar as condições propicias ao crescimento dos cidadãos, por intermédio das duas bases essenciais, que são a e saúde e a educação, cria programas que nada mais são do que esmolas, acostumando as pessoas com o fato de que ao menos o básico elas tem, sem sequer mover uma palha do lugar. Já citei em outro artigo a frase sábia de uma musica antiga de Luiz Gonzaga que dizia "Mas Doutor, uma esmola a um homem que é são, ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão." Qualquer sociólogo de botequim sabe disso. E sabe também que "vergonha" é um atributo que a maioria dos brasileiros não tem. Sobra então o que? Um cidadão viciado em esmola sob a forma de programas assistenciais propositalmente mal feitos,  paternalistas e com a intenção clara de obter o parecer favorável nas eleições, mantendo por muito tempo seus criadores no poder e realimentando esse estado de coisas indefinidamente. 

Agora, quando tocamos na questão das cotas raciais, então, a coisa pega, mesmo! Essa coisa de "resgate histórico" e similares, a mim não cola, não funciona como álibi, pois se houve um momento em que pessoas eram caçadas na África, escravizadas e torturadas, também houve em menor escala a situação de muitos outros imigrantes, como japoneses, espanhóis e italianos que trabalharam em troca de nada e sempre deviam aos seus patrões, numa coisa que se muito mais branda e menos violenta que a escravidão negra, não deixava de ser escravidão. E não se fala em nenhum resgate a esses descendentes, mesmo que em menor escala. Claro que sempre houve, e fatalmente sempre existirá o preconceito, seja ele contra qualquer pessoa que seja ou se porte diferente da maioria, seja ela qual cor for a sua de pele. E estabelecendo-se cotas para negros, por exemplo, em faculdades estaríamos resgatando alguma coisa? Claro que não! Esse argumento não sobrevive a uma análise mais apurada, pois no fundo o que se gera é mais racismo, por ambas as partes, pois o que está de fato se dizendo ao privilegiado pela cota que ele só está ali, ocupando uma determinada vaga por ser negro, ou seja lá qual for a “cota” que usufrua, não por mérito. Ao negro, tal como ao branco, ao roxo ou ao azul, devem ser dadas as mesmas condições, a mesma qualidade de ensino. Essas cotas a meu ver acabam gerando mais atitudes racistas do que antes delas existirem. E apenas algo em que pensarem: durante a Segunda Guerra Mundial, milhões de judeus, comunistas e Testemunhas de Jeová foram massacrados e mortos em campos de concentração, principalmente na Alemanha. E foram a estes criadas cotas na atualidade para compensar tal “erro histórico”? São dados privilégios aos descendentes de judeus massacrados por Hitler e que, mesmo no Brasil foram presos e torturados em Campos de Concentração? Onde está portanto o resgate histórico nesse caso?

Há uns tempos, numa dessas redes sociais, alguém postou uma imagem com a seguinte inscrição: “Eu tenho orgulho de ter um amigo negro”. E muitos e muitos compartilharam, comentaram orgulhosos e sorridentes, citando nomes e historias de seus tais amigos negros. Uma atitude típica da era do Politicamente Correto e que tem o intuito de demonstrar o quanto se é moderno. E isso nada mais é que um retrato da hipocrisia que norteia os dias atuais, muito bem espelhado e representado nas redes, pois tal afirmação é sem duvida alguma de um racismo absoluto, disfarçado de atitude correta, pois na prática quer dizer: “Olhe como eu sou legal, descolado e moderno, até tenho um amigo negro.” Isto é o camarada se vangloria de ter dado uma chance a um negro deixando-o ser seu amigo. Um amigo é um amigo e ponto. O resto é apenas hipocrisia e racismo disfarçado. E é este o mesmo raciocínio hipócrita que norteia a criação dessas cotas raciais.

Quero colocar um exemplo: o geógrafo Milton Santos nasceu no interior da Bahia, pobre e negro e, sem usar de nenhuma cota, a não ser a sua própria cota de esforço, inteligência e força de vontade, estudou muito e se tornou um dos maiores pensadores do século XX, reconhecido em todas as nações culturalmente evoluídas do mundo. Tornou-se um grande homem, um grande ser humano, com uma visão critica e apurada de seu tempo, lecionando e recebendo títulos importantes nas maiores universidades do Brasil e do mundo. E muitos outros que nasceram pobres, negros ou não, venceram nas suas vidas através de muito esforço e dedicação, sem precisar de nenhuma cota racial ou social, que no final das contas é uma maneira de fingir que um problema não existe, e o que é pior, alicerçada na ignorância e na falta de caráter da maioria da população.  Isso é o que chamo de "Fascismo Fascinante", pois é uma forma de fascismo disfarçada, onde a própria vitima é transformada em co-autor interessado, cessando ai toda a espécie de resistência. A vitima não se sente vitima, se sente privilegiada, mesmo que na prática não seja, e isso faz dela a maior defensora de um sistema muito mais opressor do que aquele que usava de torturas físicas para obter um resultado muito menor, muito menos eficaz.

A idéia que é vendida é a de que isso, essas cotas, seriam atitudes emergenciais para se corrigir erros históricos, tapando buracos em uma estrada que há muito foi deixada à própria sorte. Mas tanto na questão das leis que criam as cotas quanto as dos privilégios, o problema é muito mais acima no buraco... Há centenas anos só tapam buracos, mas nunca fazem a pavimentação correta, porque isso irá levar a um caminho livre.. Então, é ingenuidade pensar que o tapamento de buracos será provisório, porque não é feito nada para se pavimentar corretamente a tal rua.. E o cabresto fica feliz com o buraco tampado e nem lembra mais para onde uma rua pavimentada realmente o levaria... Atitude típica da Republica da Fome Agradecida. E ademais, se existe uma forma eficaz de se corrigir erros, sejam eles históricos ou não, é se acertando no presente, fazendo correto no presente. E tapar buracos não é fazer o correto, mas sim fazer o errado parecer certo. 

O Brasil foi o último país do mundo a acabar com o trafico de escravos da África, e o fez por pressões internacionais, com a Inglaterra posicionando navios nos limites das águas brasileiras com ordem de por a pique navios negreiros de bandeira brasileira. E isso foi feito muito menos por questões humanitárias do que por questões financeiras. De fato, o que existia era a constatação que um escravo, mesmo sem salário custava muito caro, além dos problemas de “disciplina”. E como já se aventava a possibilidade de usarem mão de obra de outros imigrantes, como italianos, espanhóis e japoneses, agradou-se política e financeira a muita gente interessada. O que se seguiu a isso foi um decreto literalmente “para inglês” ver, assinado por uma princesa fantoche, filha de um rei vaidoso. Uma atitude de pirotecnia digna dos dias atuais, onde leis protecionistas e paternalistas são criadas disfarçando intenções puramente espúrias. 

A mim parece muito claro que essas leis de cotas e privilégios, aliadas a programas assistenciais medíocres e mal intencionados criam apenas uma coisa: segregação, separando as pessoas em duas classes distintas, independente de qualquer outro fator: os privilegiados e o resto. E isso acaba se transformando numa guerra, como qualquer coisa desse tipo sempre acaba. Mas é uma guerra em que de fato toda a conta, todo o ônus, acaba caindo sobre as costas do "resto". É da conta destes é que sai todo o custo. Todas as despesas são pagas por aqueles que não são privilegiados jogando por terra o principio constitucional da igualdade. 

Os privilégios e cotas ganham sempre mais e mais defensores por um fato muito importante: o egoísmo. Portanto, mesmo aqueles que não são privilegiados muitas vezes, por saberem que podem vir a ser os defendem. Os que são contra se encolhem para não parecerem egoístas e assim caminhamos num circulo vicioso e viciado que causa o confronto. Sabe-se há milênios que a melhor forma de dividir um exercito é dividindo-o em partes cada vez menores, fazendo com estas partes, de preferência comecem a sentir-se prejudicada pela outra, tornando-se autônoma e passando a enxergar como inimigo não aquele anterior, que de fato era, mas o outro antigo grupo do qual ele fazia parte. Ate que estes pequenos grupos se transformam em menores e se dividam em outros menores e daí em outros menores ainda.. Até que todos, individualmente passem a ser inimigos de todos individualmente. O inimigo maior fica fortalecido e assim vence qualquer guerra.

O problema desses conceitos pseudo-socialistas que criam essas leis de cotas e privilégios é que estão estritamente ligados a uma moral religiosa, que embora se digam laicos, inegavelmente carregam. O rico é sempre mal e o pobre é sempre bom. É sempre bom e precisa ser ajudado de todas as formas. E isso é o que cria esse conceito torto. É claro que por questões nem sempre lógicas e previsíveis, nem sempre oportunidades são idênticas a todos. E tirando heranças e desonestidades, o que na maioria das vezes o que diferencia o rico do pobre são estas oportunidades. Sei que existem questões inúmeras que por horas separam as pessoas das oportunidades, mas analisando de forma global, o que separa ricos e pobres no final das contas seria o de enxergar e brigar por essas oportunidades. Não esperar por cotas e privilégios.

Citei acima a história de Milton Santos e agora quero citar a minha experiência. Enquanto ele nasceu pobre e negro no interior da Bahia, eu também nasci pobre, mas não negro e num dos bairros mais tradicionais da cidade mais rica do Brasil, São Paulo. E tanto quanto ele tive dificuldades e sempre estudei em escola publica, tendo começado a trabalhar para colaborar com as despesas da casa a partir do 12 anos. Desde cedo na escola sempre foi ótimo aluno, tirava ótimas notas e tal. Mas num determinado momento, embevecido pelo trinômio Sexo, Poesia e Rock'n'Roll, abandonei os estudos e fui buscar oportunidades onde elas dificilmente existiriam. Mas foi o caminho que escolhi. Embora naquela eras, nos anos 1970, as dificuldades para se entrar em uma faculdade fossem muito maiores, muitas pessoas que cresceram comigo as cursaram, formaram-se e alcançaram carreiras vitoriosas. Eu poderia ter trilhado esse mesmo caminho, com mais esforço, mais dedicação e empenho e decerto que teria alcançado um patamar senão de riqueza, mas de uma boa estabilidade financeira, ou ao menos uma posição profissional privilegiada. Mas não fiz, fui atrás de caminhos outros, e não posso culpar ninguém por isso. Entendem essa parábola real? No meu caso eu não era exatamente um preguiçoso, apenas escolhi um caminho errado e não me esforcei o suficiente para gerar as oportunidades "corretas".

Acontece que com o atual estado, que de direito se tornou torto, acaba por se cometer injustiças com pessoas que se esforçam e cavam suas oportunidades, fazendo com que estas paguem o ônus daqueles que não tiveram o mesmo empenho, por escolher o caminho errado, por preguiça ou desonestidade mesmo. Usando a parábola real acima, poderíamos considerar justo que alguém que tenha se esforçado e se empenhado muito, aberto mão de prazeres e horas e horas de sono em prol de construir um patrimônio seja obrigado a pagar a conta daquele que passou o tempo sem qualquer esforço, sem dedicação e sem empenho? Em outras palavras, é justo que aquele que trabalha, seja da forma que for, pague a conta do preguiçoso? É justo chamarmos isso de justiça social? É justo taxar com impostos altíssimos um cidadão que comprou um imóvel financiado e que o paga trabalhando de sol a sol, enquanto aquele invade um terreno e ali constrói um barraco e além de não pagar nenhum imposto, ainda tem serviços essenciais subsidiados pelos primeiros? Isso é justiça social? Não, isso é o império da malandragem e do escárnio. E é isso que faz com que essas leis de privilégios e cotas se sustentem. E que todas as partes envolvidas vivam felizes. Para sempre. Na República da Fome Agradecida...

E ao final quero deixar claro que só acreditarei em um Estado quando este se tornar efetivamente laico e que cumprir a risca a premissa de fornecer oportunidades idênticas a todos, indistintamente, através exclusivamente da educação de qualidade, amparada por um serviço publico eficiente de saúde publica. Com base nesse trinômio, não tenho a menor duvida de que não necessitaremos mais da tutela estatal, pois estaremos todos aptos a escolher e trilhar nossos próprios caminhos, independente de aspectos físicos, sociais ou morais. 

Como Cães e Humanos


Como Cães e Humanos
Luiz Carlos Barata Cichetto

Criei cachorros, seres humanos e gatos. Aos cachorros que criei dava comida, carinho e remédio. Aos seres humanos também.

Mas hora ou outra, por algum motivo que desconheço, os cachorros me mordiam. Sempre me mordiam. Os seres humanos também. 

Um dia um dos cachorros arrancou a ponta do meu dedo a dentadas quando fui separar uma briga de cachorros. Um outro dia, um ser humano arrancou um pedaço do meu coração. E deu aos cachorros comerem.

Hoje eu só crio gatos!

14/11/2012

Merda no Ventilador


Merda no Ventilador
Luiz Carlos Barata Cichetto
Foto Extraída do Blog "Fetozine"

Muita gente me critica pelo fato de eu estar sempre jogando merda no ventilador, mas a merda que eu jogo é a deles, por isso que reclamam tanto e se sentem tão ofendidos. Em uma entrevista ao poeta e zineiro Diego El Khouri, o poeta Glauco Mattoso afirma: "Eu diria que, sendo o Brasil um país bem vira-lata, quem quiser assumir o rotulo de 'sujo' tem mesmo que estar um pouco acima da media... Mas ser um poeta sujo não é apenas chafurdar na merda: é saber jogá-la no ventilador, saber fazer dela boas tortas para atirar na cara dos politicamente corretos.". Concordo completamente com ele, mas preciso acrescentar neste contexto que muita gente liga o ventilador, apanha a merda e a espalha, mas não basta jogar a merda de volta na caras das pessoas a própria merda que eles produzem, é preciso fazê-las sentir que aquela merda toda é deles mesmos, não de quem a colocou no ventilador. Seria quase que o mesmo efeito da tortura de Alex, personagem de Laranja Mecânica, causar o asco pelo próprio feito. No livro de Burgess e no filme isso não dá resultado, anulando o que chamam de "livre arbítrio", tornando o ser incapaz também de gerar o bem. E na tortura pelos métodos de "merda no ventilador" funcionaria? Os torturados se sentiriam enojados pela própria merda a ponto de não mais produzi-la? O que a sociedade produz é apenas merda, no final das contas. Tudo vira merda! Tudo. Até mesmo o pensamento dos intelectuais, a musica, a poesia, tudo. Tudo acaba se transformando em merda pura. E artistas, que não são aqueles que como os poderosos se locupletam com a merda produzida por essa sociedade, como poucos que ainda existem, como é o caso de Glauco Mattoso e outros, sendo que nesses outros também incluo sinceramente a mim mesmo, precisam pegar essa merda toda e jogar no ventilador com toda a disposição. Existimos num país de fracos, doentes e incultos. Muita merda é o que existe. Então precisamos de mais ventiladores.

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Pessoal Mas Transferível
Barata Cichetto

Thomas Eakins (1844-1916) Old Man Said To Be Wal Whitman
- Acorda, preguiçoso! Corta o cabelo e arruma um trabalho
E aproveita e corta essa barba, seu vagabundo do caralho!
Não tem respeito quem não madruga em fila de emprego
Escuta o que falo ou preciso falar em russo ou em grego?

Ah, mas que tolo fui eu em acreditar naquilo que eu podia
Minha arte não dá dinheiro e a cada poesia mais me fodia
Com escrita nunca recebi sequer uma moeda de um real
E o mundo que conheci acabou, agora o mundo é surreal.

- Acorda, filho da puta! Nesses dentes podres dá um jeito
Ninguém precisa de poesia e poeta não é um bom sujeito
O trem funciona desde as cinco da manhã, todos os dias
E estou farta de suas poesias e de suas eternas covardias!

Esqueci o que sabia e não aguento mais subir descidas 
Precisamos de comida e as contas estão todas vencidas
Eu preciso provar que não sou um ladrão ou vagabundo 
Ainda arranjo um emprego nem que seja um moribundo. 

- Acorda e manda currículo, qualquer emprego lhe serve
E peço em nome de Deus, que seu emprego lhe conserve
Lembra da senhoria, paga as contas de luz e o crediário
Deixa portanto essas histórias de poesia, Poeta Ordinário!

Hoje pensei em abrir o gás do fogão e tal a Torquato Neto
Enfiar a cabeça deixando um bilhete de adeus bem direto
Mas não tenho coragem, deixo que me matem aos poucos
Pois tenho a covardia dos poetas e a coragem dos loucos. 
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Leia Também a Entrevista de Glauco Mattoso a Diego El Khouri: 
http://fetozine.blogspot.com.br/2011/07/glauco-mattoso-o-poeta-da-crueldade.html